Quando me voltei dei de caras com ele. O mesmo sorriso rasgado os olhos que falam e as covinhas de cada lado da boca. Não vi a barba da véspera pespontada de branco, nem os cabelos grisalhos, vi o Jorge, que a vida, as escolhas ditaram que se afastasse de mim, dos amigos de quem ele era, afinal.
- Estás sózinha?
- Estou.
- Tens tempo?
- Todo o dia.
- Vamos pescar?
- Vamos.
- Imagina tu que o Batalha me deixou pendurado, logo hoje a última pescaria antes de recolher o barco à doca seca. Longe estava de ter companhia melhorada.
Rio alto, sabendo de antemão o quanto o pobre Batalha irá ser atormentado nos dias seguintes por conta deste deslize.
Chegados ao barco, repetimos os gestos de sempre, recebo da mão dele a chave como sempre fizemos, ligo o motor, para que aqueça enquanto ele liberta o barco de amarrações. Lentamente, saio do porto rumo ao nosso local de sempre enquanto ele vai montando carretos e preparando iscos.
O dia está agradável, quase quente o sol baixo cega-nos e tolda-nos ligeiramente os sentidos, confundindo-os enquanto os lança numa profusão de ouro azul e prata.
Cabisbaixo, tenta encetar a conversa sobre os motivos que o levaram a afastar-se dos amigos em geral de mim em particualr. De dedo em riste, imponho silêncio, não importa, não interessa o ontem só o hoje e o amanhã. Todos nós sabemos, porquê e não queremos saber mais, apenas o queremos de volta.
Os salpicos de água já fria, adivinhando inverno molham-me a cara, o cabelo, não preciso de muito mais para me sentir feliz. Hoje, quando acrodei e decidi rumar a oeste sabia, não perguntem como, simplesmente sabia que o dia estava destinado a ser feliz.
Lançamos âncora e enquanto ele pesca e eu emaranho fios e tranco carretos, falamos das coisas de sempre, a família, os amigos, o trabalho a crise, coisas de hoje, como se ontem não tivesse nunca existido, como se a fenda nunca tivesse sido aberta.
A noite precoce começa a fazer-se presente e rumamos ao porto. Tralha arrumada, o petisco do costume, no sítio do costume nos dias de pescaria .
- Então, e para a semana, vêem - pergunta ele.
- Talvez respondo eu, enquanto me despeço.
- Se vierem liga-me.
Chego a casa já noite fechada, entro e digo, feliz ao abraço que me espera:
- Estive com o Jorge, saímos de barco, fomos à pesca.
Sorri bem disposto, feliz, sabe bem o quanto fechar esta fenda era importante para mim.
Foi fácil, nas grandes amizades como no amor o importante é não fechar as fendas de modo abrupto, em conflito, é preciso saber esperar dar espaço, compreender e deixar uma estrada limpa de obstáculos para que o caminho de regresso possa ser feito, com calma, sem danos colaterais, mesmo que para isso sejam precisos 23 anos.
14 comentários:
É bem verdade, sim senhora.
23 anos... Ainda tenho muito que esperar pelo fecho de algumas fendas, então.
E ficou mesmo fechada? Bem fechada?
:))
Bjss
Costuma-se dizer, "quem espera sempre alcança" e o "tempo tudo cura"...e por vezes é bem verdade, não é?
Uma verdadeira amizade nunca acaba, por mais anos que passem...
Amizade, amizade, amizade com fendas, se por acaso se voltam a encontrar, o tempo encarregou-se de as fechar;
O pior é quando um dos interlocutores desaparece antes desse encontro ...
Amigos,
A fenda em questão foi provocada por uma terceira pessoa. Culpa dele que não soube separar as coisas? Talvez. Não julgo nem guardo qualquer tipo de mágoa, levou 23 anos a perceber o que tinha que ser entendido. Hoje recupera os amigos que quiseram esperar.:)))
Bjos
Tita
Tita
Que bom que tenha sido assim...e obrigada por dividir connosco...nunca é demais contar estas coisas que são mais que frases feitas, porque são feitas da realidade.
Beijos
Ana
Bolas... Emocionei-me...
Tenho assim uma fenda já fechada e bem recentemente.
E outras por fechar. Vamos ver.
Beijo enorme, minha linda.
ovo*
Fantástico Tita.
Olá Red
Uma amiga nortenha, a Joana Quelhas, tem um blog onde expõe alguma da arte que pratica. Dá para veres e divulgar?
Bjs
Aí vai
http://postigodacor.blogspot.com/
Mais vale tarde, do que nunca.
23 anos é muito tempo...
Beijos.
todos nós por aqui e por ali temos fendas abertas!
beijo meu.
Foi na blogosfera que redescobri uma amiga de há 30 anos,companheira diária de encontros, lutas, desncontros, amores e desamores, que a minha vida de andarilho perdera em percursos variados. Sei, por isso, como são bons esses reencontros. Permita-me que partilhe um pouco da sua felicidade.
Enviar um comentário