terça-feira, 19 de agosto de 2008

HOJE ESCREVO


De mim para mim e na primeira pessoa. Como antes, como sempre, antes dos dias dos blogues.

Se Santarém me viu nascer, aspirar o primeiro trago de ar, para a Nazaré fui levada quase de imediato .

Filha de um homem do mar, muito ligado ao Ribatejo, à terra, aos toiros, à tradição marialva, foi-me fomentado desde muito pequena o amor pela lezíria, pelo trabalho do campo, o respeito por quem trabalhava de sol a sol para que à mesa nada nos faltasse.

O valor do suor de quem trabalha usando as mãos sempre me foi ensinado a valorizar e respeitar, ao ler tantas idiotices e atoardas escritas por aí, ao desbarato, sou eternamente grata aos meus pais que me educaram dentro destes valores.

Ensinaram-me sobretudo, a nunca menosprezar ou considerar alguém que não foi na vida tão afortunado como nós, que não pôde aprender, que não teve asas, ou que as viu cortadas e não pôde como nós, voar mais alto.

De tenra idade me foram mostrados os campos de Almeirim, Alpiarça, ora cobertos de morangos, melão, milho cumprindo os ritmos da lavoura, ora inundados pelo Tejo que amorosamente a cada inverno vinha a terra lavá-la purificá-la de todos os excessos dos homens.

Corri, cresci pelos campos de Valada, tomei banho no Tejo com os filhos dos pescadores das Caneiras, grandes amigos que me ensinaram os segredos que o rio encerra e dos quais poucos suspeitam.

Pelos campos de Vila Franca alonguei os olhos sempre extasiada pela imponência do gado negro, do gado bravo, os toiros.

Envoltos numa nuvem de pó correm os campinos com maestria, os verdadeiros reis da lezíria, juntam o gado e levam-no campo fora a beber a uma qualquer maracha, o cheiro do perigo, do pó do sol esteve sempre bem patente na minha vida.

Por tudo e apesar de tudo amo a minha cidade, o Ribatejo, e tenho um orgulho enorme em ser ribatejana de verdade, pois é que há muito quem nasça no Ribatejo e nunca seja verdadeiramente ribatejano, mas isso apenas pode ser entendido por quem sabe, ser diferente é ser ribatejano e ribatejano não é quem quer, é quem pode.

Ainda hoje a minha alma estremece quando ouço algum ou alguma apregoada ribatejana de gema, chamar bois aos toiros, imperdoável ofensa.

Dizia eu que se Santarém me viu nascer, se Santarém consta, faz fé, no meu bilhete de identidade, a Nazaré foi sempre também a minha terra, o meu local de nascimento.

Apenas com uma semana de vida, nasci bem no início do Verão, fui levada para a Nazaré e aí, neta de um armador de pescas não podia, era inevitável que a minha vida não fosse também ela levada ao mar, à faina à vida dos pescadores cuja dureza se mantém quase imutável até aos dias de hoje, 50 anos volvidos.

O respeito pelo mar, a vida dura dos homens que lhe arrancam, afrontando mil perigos o seu, o nosso, sustento, foi-me dada a conhecer na mais tenra idade e o apelo do mar foi inequívoco, forte, presente, incontrolável, amor fulminante à primeira troca de olhares.

Muitos dos fins de semana de Inverno e uma boa parte do Verão eram passados na Nazaré onde escassas as vezes dormia em casa desde muito pequena, para enorme desespero da minha mãe e avó, preferia a companhia das mulheres dos pescadores, sempre agarrada às saias da M. J., assistia de perto sempre fascinada ao largar dos batelões em direcção às traineiras que fundeadas a meia distância da praia, não havia ainda porto de abrigo, aguardavam os homens que lhes encheriam à força de braços os porões de sardinha e carapau pequenos pedaços de prata palpitantes.

Dormi madrugadas de angústia, embalada por lágrimas de desespero, na praia, sobre um xaile de lã espessa, de cadilhos retorcidos, esperando o regresso dos homens em dias de mar, comi dos quinhões, aprendi orações mudas, das que se dizem com o olhar.

Cresci e percebi o licitar na lota, o escolher do melhor preço, aprendi a compor a banca a vender no mercado, a escolher, amanhar e a partir o peixe para a caldeirada.

Nada me dava igual prazer do que pôr o avental escrupulosamente bordado sobre o meu vestido de verão de menina da cidade e atender mais uma freguesa, do alto dos meus oito anos.

Recordo as vidas que se perderam à vista da praia por falta de tudo o que era simples, básico, essencial, tive a sorte de assistir ainda ao puxar das redes na praia auxiliadas as mãos dos homens pelos bois. A arte xávega que hoje não é mais do que imagem em folheto turístico.

Que saudade desses dias em que a minha vida se pautava pelo ritmo das pescas, do mar, pelas tarefas que o suceder das estações do ano impunham aos filhos do mar e aos filhos da terra.

Toda a minha vida o meu coração foi suficientemente grande para abarcar estas duas paixões imensas, a terra e o mar, amo, venero e respeito cada uma com a mesma intensidade não conseguindo viver longe, por muito tempo de uma ou de outra.

Afirmo sem qualquer tipo de falso pudor que me alimento sempre tanto nas horas tristes, como nas da maior alegria dos cheiros da maresia do peixe acabado de pescar, do cheiro da terra, dos animais. Cada acontecimento tem o seu cheiro próprio.

Cada estação, cada hora do dia concede aos milhares de aromas notas próprias, quase sempre prenúncios de esperança, muitas vezes ecos de tristeza e fatalidade.

Os anos rolaram rápidos, passaram a uma velocidade alucinante e de repente percebi que tenho saudades de mim, de mim dos anos do princípio e dos anos do meio e medo, medo do que serão os anos do fim.

15 comentários:

Anónimo disse...

Que texto espectacular!
Depois de ler alguns parágrafos bastou fechar o olhos para ser transportada para esse teu mundo que tão bem descreves.

"medo do que serão os anos do fim."
Medo de quê?
Com tantas recordações, com uma vida tão preenchida não existe medo.
Vais ter sempre um vasto arquivo de recordações muito boas para revisitares.
E concerteza muitas histórias para contar.

carlota disse...

O comentário anónimo é meu.
Sou a Carlota

pensamentosametro disse...

Olá Carlota,

Este cantinho de amigos recebe-te com agrado. Os anos do fim sempre me assustaram, coisas de quem tem há pouco tempo 5o anos.

Bjos


Tita

Anónimo disse...

Tita estou sem fôlego.....
Fantástico este teu texto. Consigo até rever-me nalgumas situações aqui descritas.
Não tenhas medo dos anos que aí vêm! Lembra-te sempre do teu vestido de menina da cidade, com o avental bordado por cima, e continua a atender a freguesia...

SONHADOR disse...

Ganda TIA!!!

Beijos do sobrinho.

Rita disse...

Adorei este teu post, quase consegui sentir aquilo que sentes. Não tenhas medo dos dias do fim, talvez nem seja um "fim", quem sabe??? Nunca sofrer por antecipação, quando lá chegarmos, logo se vê...
Jokas

Teresa disse...

Abri o teu blog, deparei-me com a Nazaré.
Terra que acolhe dos meus melhores momentos em criança, tonta, desenfreada por aquela praia fora.
Mais tarde, abraçou-me, e à minha família (agora a que eu havia construído) para, na aldeia de Pederneira, passarmos dos momentos mais românticos e serenos da nossa existência.

Santarém propriamente dita, pouco me diz. Mas é Ribatejo... E ribatejo, sim. Ribatejo diz-me de tudo. Alentejo também.

Tão bom teres-te dado a ti própria e teres partilhado com todos os que te lêem este grande pedaço de ti.

Abracinho apertado.

Mr X disse...

Vamos mas é comer uma sopa da pedra!

:)

Olha miúda, eu sou alfacinha. Portanto, um saloio fora da cidade. Mas tenho a sorte de ter amigas em terras amigas, como Golegã, Barquinha, Limeiras, etc.
Portanto, aprendi a amar a Leziria. E sim, é das coisas mais bonitas que o mundo dá ao mundo.

Agora boi, touro, touro, boi... é tudo preto e tem dois cornos.
:)

Anónimo disse...

Lindo texto, que me traz alguma melancolia por saber que atrás de mim há um passado a que não posso regressar. Não é que sinta nostalgia do passado, é mais por também ter algum receio do futuro.

Anónimo disse...

Tenho um amigo de longa data que mora em Almeirim... ele deve estar quase a chegar duma das suas viagens submarinas (que se não estou em erro é nas zonas das Findandias - mar do norte e mais não sei o quê) tenho prometido por essa altura uma loucura de comezainas, vinho e aventuras... se quiseres... aparece!

Não prometo sopa que ambos andamos fartos disso mas... outras coisas mais melhores-boas-coiso-diferentes, isso tá prometido!!!!!!

Ana Oliveira disse...

Tita
Este é o tipo de texto que não se lê...vive-se, sente-se, cheira-se...
É bom ter tantas recordações boas, dos anos de trás e do meio.
Percebo isso dos cinquentas...às vezes também me cheira a palmeiras e óleo de palma e também tenho medo de um dia me esquecer de recordar as coisas boas da vida.

Beijos

Ana

Vera disse...

Pensamentos, nasci em Lisboa, mas também tive o prazer de ter férias no campo (Torres Novas, Ferreira do Zêzere, Alpiarça) graças às origens da minha ascendência. Também sou ribatejana de coração no que diz respeito a touradas, a melão, a uvas e a bom vinho. Gosto de relembrar os dias em que andava na apanha dos figos, a pô-los em tabuleiros de madeira a secar ao sol. O teu post está 5 estrelas!
Já estás linkada no VeKiki!

rosa disse...

e volto de férias para ler isto!!!
és maravilhosa, já te disse????

com tantas, tão reais, e tão doces memórias, só podes ter medo de as perder.... o que por vezes, acontece lá para o fim (mas ainda falta muito, descansa!). para que tal não aconteça, que tal escreveres as tuas memórias? como se de um relato se tratasse, romance histórico, os dias da tita. eu lia, garanto-te... muitas vezes!!!!

fj disse...

o meu lugar era lá mais ao fundo - 1ª fotografia.

2ª fotografia - estou cá deste lado, as x tb do outro lado de lá.

Post muito caTITA e 100tido.

bjinhos

fj disse...

agora sim acabei de ler o post 100ser na diagonal - minha 1ª opção de leitura :)

Tu és o q se apelida de uma pessoa de "Pura alma ribatejana"!

Fiquei preso por algum (muito)tempo ao teu texto...podes confirmar ;)

Muitos dos casos q relatas aqui revejo-me bastante em alguns deles, apenas o facto de tomar banho no Tejo, talvez o mais marcante e o q mais me assustou/assusta ainda, depois de ter visto desaparecer um amigo meu enquanto brincavamos num local aparentemente 100qq perigo...essa é a imagem q tenho memorizada, depois desse dia, não mais nadei neste Rio que tantos perigos nos oculta...

Também tenho um orgulho enorme em ser Ribatejano... ah e de falar Ribatejano.
eheheh!!

Um grande abraço...de um Ribatejano que tem andado muito ausente para os lados do Douro.