Que como quase todos os meus dias começam, teve ele também um começar agradável, até o trânsito se encontrava domado, calmo, arrumado, por isso cheguei mais cedo que a hora agendada, tive tempo até, para um breve passeio junto ao rio.
Chegada a hora, entrei como sempre na antecâmara onde és membro excedentário, supérfluo, dispensável e malquisto.Como sempre passei por ti, como sempre, sem te ver, demorei-me nas outras pessoas que têm a dolorosa missão, o imerecido castigo de coabitar contigo. Cumprimentos, sorrisos, uma, duas, banalidades, o costume entre pessoas normais.
No regresso, do que ali me levara, voltei a atravessar a antecâmara, despedi-me de quem me merece atenção, simpatia, como já havia feito tantas, tantas vezes antes.
Desta vez, neste dia, inexplicavelmente, movida talvez pela minha pior metade, detive-me junto a ti e num sussurro aconchegado ao teu ouvido, revelei-te com a minha voz doce, macia de veludo, a minha identidade secreta. Não me detive nem por um segundo, nem sequer tentei, perceber, avaliar o estrago em ti produzido. Segui em frente, abri a porta , lentamente, como sempre, como é hábito.
Antes de cruzar completamente a ombreira fui ainda alcançada pelo eco do terror que te perpassava te invadia numa onda só, gigantesca, avassaladora, impiedosa. Gostei, confesso, o teu desespero soube-me a vingança e esta a ambrosia. Contudo, o teu segredo esteve sempre a bom resguardo comigo, nunca revelei o monstro, nunca destapei a tua triste verdade.
Percorri os corredores, demorei-me aqui e ali, cumprimentando uns, trocando uma impressão com outros, estes istos e aquilos fizeram com que decorressem vários minutos até que chegasse à saída, sentia-me leve, sem pressas, liberta.
Mal tinha ganho a rua ouvi atrás de mim, sem sobressaltos, como se o soubesse antecipadamente, como se o esperasse, a sirene urgente de uma ambulância.
Continuei a andar em frente, calmamente, sem me deter ou mesmo esboçar o menor movimento de virar a cabeça, para ver, confirmar, estava escrito há muito este momento, incontornável, inevitável.
Sabia que era tarde de mais, inútil a sua chegada, sabia pelo voo súbito e canto despreocupado dos pássaros, pelo brilho do sol que estranhamente se acentuara e pela leveza acrescentada ao ar naquela meia manhã de um dia qualquer, por tudo isto sabia que a tua maldade já não vivia entre nós.
Relutante, com grande esforço, impelida apenas pela humanidade, impedi a minha pior metade de deixar subir e ostentar um sorriso de triunfo, de regozijo que se formava e crescia dentro de mim. Procurei fundo, no meu lado melhor, a compaixão, o perdão, necessários, imprescindíveis, a este momento, com grande esforço encontrei, perdoei, esqueci, no que me diz respeito, nunca exististe.
8 comentários:
Assim, só com um sussurro? Que pessoa fraquita. Blergh. A não ser que.......
;)
Gostei de imaginar, gostei mesmo!
Bj
Era uma vez ... um dia único, espero!
Thunderlady,
Os "maus" são fracos, têm a estrutura corrompida...
Gi,
Eu é que espero por esse dia único, aliás, esperamos.
Bjos
Tita
Um dia em cheio...
Tita, és tão forte.
Texto espectacular.
Mais dias desses tenhas tu.
Obrigada pela "teoria" partilhada.
Beijo (a correr, a correr...)
Lisa
Este blog continua a ser um regalo para a alma.
Obrigado
Lindo de morrer! Fartei-me de chorar! Não há mais ninguém em Portugal a escrever assim!
muito bom!
às vezes, gostava de sussurrar assim. poucas vezes. mas não tenho coragem.
Enviar um comentário